Uma das coisas
mais cansativas que conheço é mudança de residência. Para que ela
aconteça é necessário um bom tempo de preparação, esforço físico imenso
para carregar e descarregar o caminhão de mudanças e uma boa dose de
paciência e perseverança para arrumar tudo na nova casa. Essa arrumação
gasta muito tempo, envolve chatas e delicadas instalações de armários de
cozinha, prateleiras, quadros e vasos e, ainda, a disposição de habitar
precariamente até que tudo esteja em ordem. Por isso, as mudanças são
sempre marcadas pela alegria de iniciar uma nova fase da vida e pelo
desânimo de ter de passar por todo o processo de mudança.
O Salmo 68
foi composto durante uma mudança. Mas quem estava mudando não era uma
pessoa, mas a “arca do testemunho”. Deus ordenou que ela fosse
construída para ficar dentro do tabernáculo, no lugar chamado “santo dos
santos” (Ex 26.33). Mas, devido ao pecado dos filhos de Eli e da negligência do pai, a arca foi tomada pelos filisteus (1Sm 4.11). Ao ser devolvida, ela ficou na cidade de Quiriate-Jearim (1Sm 7.1)
desde os dias da adolescência de Samuel até o início do reinado de Davi
em Jerusalém – cerca de cem anos. A primeira tentativa de levar a arca a
Jerusalém não teve sucesso, pois Davi preparou um meio de transporte
irregular de acordo com a lei (2Sm 6.1-11). Mas, depois de três
meses abençoando sua nova morada, a arca foi transportada do modo
prescrito por Deus e chegou a Jerusalém em meio a uma explosão de
alegria (2Sm 6.12-19; 1Cr 15.25-16.3).
Quando a arca já estava na tenda que Davi preparou para ela, ele ordenou que se cantasse algo que se parece primeiro com o Salmo 105 (1Cr 16.8-22), depois com o Salmo 96 (1Cr 16.23-33) e termina de um modo que lembra o Salmo 106.47,48 (1Cr 16.35,36). Porém, ao que tudo indica, o Salmo 68
foi composto durante a viagem da arca para Jerusalém. Percebe-se isso
vendo que o texto começa com a declaração feita por Moisés na primeira
viagem da arca (Sl 68.1 cf. Nm 10.35). Em segundo lugar, Davi ambienta o salmo em uma comitiva que chamou de “o cortejo do meu Deus” (halîkôt ’elî).
Lembrando que a arca simbolizava a presença e a habitação de Deus entre
o povo da aliança, esse cortejo representava a habitação divina no
lugar correto e com a adoração adequada. Foi um dia realmente marcante,
digno de uma composição como o Salmo 68. Por isso, podem-se ver alguns efeitos da presença de Deus entre seu povo.
O primeiro efeito é o estabelecimento da justiça (vv.1-6). O início da marcha da arca (v.1) se dá ao som do brado “Deus se levanta” (yaqûm ’elohîm). Esse levantar, segundo o texto, promove a derrota dos inimigos (v.2): “Como a cera se derrete diante do fogo, assim perecem os ímpios diante de Deus” (kehimmes dônag miffenê-’esh yo’vedû resha‘îm miffenê ’elohîm).
A razão para o injusto perecer diante de Deus é a atuação divina de
conter o mal durante a História e puni-lo definitivamente ao final dela.
Por sua vez, a presença de Deus não é temível, mas aprazível, para os
que foram por ele justificados (v.3): “Mas os justos se alegram, eles exultam na presença de Deus” (wetsaddîqîm yismehû ya‘altsû lifnê ’elohîm). Por causa da justiça promovida pelo Senhor, o salmista louva o Senhor (v.4), o qual protege os desvalidos e oprimidos pelos injustos, pelo que Davi o chama (v.5) de “pai de órfãos e juiz de viúvas” (’avî yetômîm wedayyan ’almanôt). Assim, a justiça de Deus é bem distribuída (v.6): “Deus assenta os abandonados” (’elohîm môshîv yehîdîm) – no sentido de dar uma moradia segura a quem não tem –, “mas os rebeldes habitam em terra árida” (’ak sôrarîm shôknû tsehîhâ).
O segundo efeito da presença de Deus é a concessão da graça (vv.7-10). Davi, lembrando da jornada israelita no deserto seco (v.7), recorda também da concessão do que era vital (v.8): “Escorreram águas vindas da presença de Deus” (shamayim notfû miffenê ’elohîm).
Para expressar o cuidado bondoso de Deus, Davi usa a figura de uma
copiosa chuva vinda de Deus para matar a sede de Israel, herança do
Senhor (v.9): “Tu verteste, ó Deus, chuva abundante em tua herança. Quando ela estava exaurida, tu a firmaste” (geshem nedavôt tanîf ’elohîm nahalateka wenil’â ’attâ kônantah).
Assim, o impossível aconteceu: Israel conseguiu habitar no deserto por
quatro décadas. Suas frequentes murmurações desde que deixaram o Egito –
dez vezes em cerca de um ano (Nm 14.22) – certamente os desqualificavam
como merecedores do sustento diário. Mas foi exatamente aí que agiu a
graça de Deus vinda da sua presença no meio daquela nação (v.10): “Teu rebanho habitou ali” (hayyatka yoshvû-bah).
O fato de os israelitas terem morado no deserto tanto tempo e
sobrevivido pela ação graciosa de Deus revela, por si só, o caráter do
Senhor: “Tu abasteceste o necessitado pela tua bondade, ó Deus” (takîn betôvatka le‘anî ’elohîm).
O terceiro é o anúncio da primazia divina (vv.11-16,21-23). Davi recorda, ainda, da conquista de Canaã por ordem de Deus (v.11). O resultado foi uma incrível vitória sobre os cananitas (v.12): “Reis de exércitos fogem e continuam fugindo” (malkê tseva’ôt yiddodûn yiddodûn). O que vem a seguir é de difícil interpretação (v.13),
mas parece que o salmista se refere ao enriquecimento dos israelitas à
custa do despojo obtido nas vitórias promovidas por Deus. Tudo isso
acontece porque o poder de Deus é maior que o dos adversários do seu
povo (v.14), pelo que é chamado de “Todo-poderoso” (shadday). Essa ideia combina com a citação subsequente do “Zalmon” (tsalmôn) – um monte próximo a Siquém – e com a menção da palavra “monte” (har) seis vezes nos vv.15,16.
Os montes representavam refúgios seguros para fortalezas impenetráveis e
o local de habitação e adoração dos deuses – alguns deles eram tão
altos que tinham geleiras. Assim, o que o salmista faz é mostrar a
primazia de Deus quando se faz presente entre seu povo que, sem
dificuldades, derruba as fortalezas inimigas e frustra as falsas
esperanças dos deuses desses povos. Por isso, só o monte em que o Senhor
se faz presente – Sião – é vitorioso no final (v.16): “Ó escarpados montes, por que invejais o monte que aprouve a Deus habitar?” (lammâ teratsedûn harîm gavnunîm hahar hamad ’elohîm leshivtô).
O quarto é a salvação do seu povo (vv.17-23).
A próxima memória de Davi vem do período dos juízes no qual Israel
sofreu opressão nas mãos de seis povos vizinhos. Essa percepção se dá no
v.18, em que o salmista parece ter em mente a ordem de Débora a Baraque, em seu cântico (Jz 5.12): “Captura os teus cativos” (shaveh shevyeka). Essa virada militar – vencer o povo que antes vencia e capturar quem antes era o autor de capturas – é atribuída a Deus (v.18): “Tu levaste cativo os cativos” (shavîta shevî).
Assim, os reinos opressores que cobravam impostos e obediência das
tribos israelitas foram agora despojados e tributados por Deus: “Tomaste
dádivas dos homens, até entre os rebeldes, para [ali] habitarem, ó
Senhor Deus” (laqahta mattanôt ba’adam we’af sôrerîm lishkon yah ’elohîm). O jugo dos inimigos representou salvação para o povo da aliança (vv.19,20), pelo que diz o salmista (v.20): “Nosso Deus é o Deus que salva e a Javé, o Senhor, pertence a libertação da morte” (ha’el lanû ’el lemôsha‘ôt ûlêyhwh ’adonay lammawet tôtsa’ôt). Essa salvação se deve à presença de Deus com seu povo (v.17): “O Senhor está com eles” (’adonay bam).
O ultimo efeito da presença de Deus é a adoração digna da glória divina (vv.24-35). Com as bênçãos do passado vívidas na mente, o salmista participa do transporte da arca para o monte Sião, em Jerusalém (v.24): “As pessoas veem o teu cortejo, ó Deus, o cortejo do meu Deus, meu rei, em santidade” (ra’û halîkôteyka ’elohîm halîkôt ’elî malkî baqqodesh). Esse cortejo segue em meio ao louvor alegre e reverente (v.25). Assim, as tribos de Israel bendizem o Senhor e participam do transporte da arca que representa sua presença no meio do povo (vv.26,27). Esse louvor ao Altíssimo é tão merecido que pessoas de outros reinos prestam culto ao Senhor no local da sua habitação (vv.28-31). Por isso, o salmista conclama (v.32): “Cantem a Deus, ó reinos da Terra” (mamlekôt ha’arets shîrû le’lohîm). A razão da ordem é que a soberania de Deus (v.33) se vê presente em Israel (v.34), pelo que o salmista encerrou com a frase mais lógica diante da glória do Deus presente entre os homens (v.35): “Bendito seja Deus” (barûk ’elohîm).
Que
glorioso deve ter sido caminhar ao lado do cortejo de Deus rumo a
Jerusalém em meio à linda solenidade! Que sensação devem ter sentido os
israelitas ao ver a arca entrando na tenda preparada para ela em meio a
tantas aclamações! Porém, apesar de não termos hoje, como igreja de
Cristo, uma arca e um tabernáculo que marquem a presença de Deus no meio
do seu povo, temos a mesma certeza da presença do Todo-poderoso por
onde quer que formos (At 7.48,49; 17.24 cf. 1Rs 8.27; Sl 139.7-10); temos a promessa de Cristo de que estaria conosco todos os dias até o fim (Mt 28.20); e somos habitação do próprio Espírito Santo (1Co 6.19; Ef 1.13,14). Sendo assim, os mesmo efeitos da presença de Deus devem se repetir em
nossa vida, tanto de modo individual como coletivo. Portanto, que haja
realmente em nós esperança de justiça divina e um proceder justo da
nossa parte, confiança na graça maravilhosa de Deus, defesa pública da
supremacia de Deus, fé salvadora unida ao evangelismo dedicado e,
finalmente, uma adoração tão sincera, piedosa e dedicada de maneira que o
mundo sem Cristo fique surpreso por ver a mudança de vida de homens
pecadores e a glória de Deus louvada por bocas pequenas demais para
glorificá-lo o bastante. Afinal, ele realmente está presente entre nós.
-Pr. Thomas Tronco